quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

STF x CNJ


    O ano se encerrou com a pantomima dos Ministros dos Tribunais Superiores, em exposição pública de divergências que aumentam ainda mais a descrença da população em um dos poderes mais fechados da República Federativa do Brasil. Com efeito, a celeuma entre o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça é antiga. A tentativa, tanto do STF como das diferentes Associações que representam os magistrados brasileiros, de enquadrar a Corregedoria e o próprio CNJ, esvaziando suas atribuições e trancando investigações, remonta à gênese desse órgão colegiado nacional em 2005 e a imposição de limites à sua atuação constitui-se em retrocesso perigoso em nosso sistema jurídico.

    De início, impõe-se uma consideração preliminar acerca do imbróglio federal: o foco principal da discussão foi a concessão de liminares, faltando somente algumas horas para o recesso forense, no apagar das luzes, parecendo “jogo baixo” dentro de um regime democrático de direito. Igualou-se o STF ao Poder Executivo, que tantas críticas recebe pelo abuso na edição de medidas provisórias. Em certo sentido, soa estranho para a sociedade a decisão proferida no apagar das luzes do ano forense, sem esperar o julgamento pelo Plenário do Pretório Excelso no próximo ano. Essa é a transparência que se exige de um órgão supremo como o STF. Fica a sensação de que a pressa verificada na concessão das liminares antes do término do ano forense esconde algo de errado no Tribunal de Justiça de São Paulo, órgão que estava sendo investigado pelo CNJ.
    Em síntese, a dobradinha dos Ministros do STF fez inveja às duplas Pelé e Tostão, Romário e Bebeto e, mais recentemente, Neymar e Ganso. Primeiro, o Ministro Marco Aurélio, restringindo de forma categórica e precária o poder de investigação do CNJ. Poucas horas depois, e de forma não menos sensacional, surge o Ministro Lewandowski, suspendendo de maneira espetacular e, também, precária - aliás, precaríssima na linguagem do Ministro -, a investigação sobre a folha de pagamento de servidores do judiciário paulista, que tiveram movimentações financeiras atípicas. Tudo bem casadinho e próximo do apito final do ano forense, assim mesmo, como um presente de natal para os investigados. Por paradoxal que possa parecer, o Ministro Lewandowski não viu conflito de interesse na sua intervenção, mesmo a despeito desse conflito ter ficado evidenciado para todo o Brasil, especialmente para a comunidade jurídica, entendimento respaldado por outros Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal, em confidências anônimas para a mídia. Com o devido respeito, parece que a crise do ensino jurídico chegou à nossa Corte Suprema.
    Como se pode observar, na prática pretoriana, a aplicação dos institutos da suspeição e do conflito de interesse não é a mesma do mundo jurídico real, ou seja, fica decretado que o direito aplicado aos jurisdicionados comuns sofre restrições quando, na causa, aparecer um Ministro “interessado”. O fato é que, ao interpretar institutos jurídicos processuais em seu proveito, o Ministro Lewandowski comprometeu o STF e ofendeu a comunidade jurídica de todo o país que jamais vai engolir que um integrante da mais alta Corte da estrutura do Poder Judiciário tenha sido beneficiado (mesmo que legalmente) pelo TJ/SP, e aguarde o final do ano forense para decidir causa em que, induvidosamente, está presente o interesse, no mínimo, em não prejudicar seus antigos colegas investigados. Desse modo, é evidente que é sim, pessoalmente interessado porque, ao conceder liminar suspendendo investigação da Corregedoria do CNJ, o Ministro Lewandowski escondeu interesse pessoal no caso, considerando que, negue ou não, é um dos beneficiados da possível irregularidade, objeto da investigação da Corregedoria.
    É preciso ficar claro que não se discute, aqui, a legalidade do pagamento. Esta estava sendo investigada pela Corregedoria. A questão principal é sobre a obrigatoriedade de declarar-se impedido para apreciar a matéria. A alegação de que não se declarou impedido por não ter julgado o mérito da causa é de um academicismo surpreendente para um Ministro de “notável saber jurídico”. Induvidoso que, ao suspender a investigação, o nobre Ministro interferiu no caso que lhe poderia causar prejuízo. Também não é por não poder ser investigado pelo CNJ que faz desaparecer o seu interesse na causa. Evidente que o objeto da investigação é o TJ/SP e não o Ministro. Mas, esqueceu que o fato investigado pode resultar em prova de que ele ou qualquer outra pessoa foram beneficiados por pagamentos ilegais. Naturalmente, se surgirem indícios de que algum membro do STF praticou irregularidade na época em que era Desembargador do TJ/SP (e isso não ocorreu), o CNJ deveria encaminhar as informações ao próprio STF e, também, à Procuradoria-Geral da República, já que carece de legitimidade para investigar os Ministros da Suprema Corte. Mais uma vez, é importante frisar que não se discute, neste momento da abordagem, a legitimidade do direito dos magistrados ao recebimento de diferença referente a auxílio moradia que durante a década de 1990 era paga a deputados e senadores, e creio que nem mesmo o CNJ estava investigando essa matéria, mas sim, a forma como o pagamento foi feito, sem padronização, sem observância, ao que parece dos princípios da igualdade e da legalidade, ou seja, pagamento em uma única vez a alguns magistrados, e em parcelas para outros juízes.
    Ressalta dessa discussão o entendimento de que a forma de composição dos Tribunais Superiores precisa ser repensada urgentemente. Os cargos de Ministros desses Tribunais não pode se transformar em presente distribuído entre correligionários de partidos políticos. Exige-se de seus membros imparcialidade e não fidelidade partidária ou puxa-saquismo. Seus componentes devem ser técnicos em Direito e não em marketing político. Parece restar claro que, notável saber jurídico exigido pela Constituição Federal foi substituído pelo notável conhecimento do marketing político nas campanhas rumo aos Tribunais Superiores, fazendo com que verdadeiros alquimistas ascendam à condição de Ministro, mesmo não sabendo diferenciar Habeas Corpus deCorpus Christi. O direito? Ora, o direito aprende-se depois com os assessores. A submissão e o interesse particular emolduram essas personalidades, o que indica que a composição, não só do Supremo, mas de todos os Tribunais Superiores deve ser revista, urgentemente. Enquanto o triunfo da vaidade estiver sendo alimentado pela esdrúxula forma de composição dos Tribunais Superiores no Brasil, casos como esse se perpetuarão em nosso sistema jurídico.
    Afinal, a questão é definir se o CNJ - cuja competência, trazida pela Emenda 45, está prevista na Constituição Federal - só pode agir depois das Corregedorias. E, se estas não agem, o CNJ, competente que é para controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, de acordo com o art. 103-B, §4º da CF, tem que esperar para agir? Sua competência é realmente subsidiária como defendem alguns, ou é concorrente? Prevalecendo a tese da subsidiariedade, o CNJ não ficaria limitado a apenas julgar recursos interpostos contra investigações nos tribunais estaduais, afastando-o ainda mais da sociedade? Ressalte-se que o CNJ pode avocar processos disciplinares em curso, como nos casos de omissão das Corregedorias (§ 4º, III) e rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano (§ 4º, V). Nesse particular, há necessidade de se estabelecer prazo para a manifestação das justiças locais. De qualquer forma, essa matéria será examinada com mais profundidade pelo Senado no ano de 2012, durante a votação da PEC que garante poderes de investigação ao Conselho Nacional de Justiça.
    Perpetrando de forma mais incisiva ao tema, há evidente desproporcionalidade entre a ação moralizadora do CNJ e a agressividade das notas públicas das Associações que representam os juízes. O argumento das Associações de que o CNJ passou a investigar eventual prática de crime, e não de infração disciplinar administrativa é insustentável. Qualquer incipiente no estudo do direito sabe que a classificação é feita depois do fato investigado, como se a Corregedoria do CNJ pudesse afirmar, antes de investigar, que as possíveis irregularidades detectadas no TJ/SP tipificam crime de corrupção. Quando bem investigadas, poderiam ser totalmente justificadas.
    Merece, também, ser destacado que, pela formação e conhecimento jurídico da própria Corregedora, parece estranha a acusação de que o CNJ promoveu a violação dos sigilos fiscal e bancário dos magistrados e funcionários dos Tribunais investigados, assim como a varredura na movimentação financeira suspeita dos parentes, sem qualquer motivo e embasamento legal. Não é crível que a Corregedora tenha praticado crime de quebra de sigilo de dados, pela sua reconhecida responsabilidade na condução de investigações históricas em sua vida profissional. O simples fato de ter sido exigido cópia das declarações de renda dos magistrados paulistas, também, foi considerado abuso da Corregedoria. É preciso lembrar que o papel disciplinador do CNJ e a investigação dos membros desses Tribunais, decorrem, exatamente, do fato de que suas Corregedorias não estão conseguindo investigar e punir os membros faltosos. Ora, alegar que o CNJ só pode atuar depois de finda a investigação das Corregedorias é esquecer que ditas cujas não atuam, salvo honrosas exceções. Sendo assim, como se poderia aguardar o término de uma investigação se nem mesmo foi iniciada? Prevalecendo o argumento do Ministro Marco Aurélio – único a votar contra a criação do CNJ em 2005 - de que o CNJ só pode atuar nos casos já julgados pelas Corregedorias, surge uma questão: se a Corregedoria não julga, o CNJ não teria que avocar todos esses processos? Essa lentidão ou mesmo inércia das Corregedorias composta por pessoas, muitas vezes, íntimas dos investigados é que causa o descrédito popular no judiciário.
    Na verdade, pela sua atuação e contribuição para o aperfeiçoamento do judiciário brasileiro, a sociedade esperava que os poderes desse órgão fossem ampliados e não esvaziados. Vale lembrar que o CNJ, mesmo prestando relevantes serviços à moralização da justiça brasileira, sempre incomodou aqueles que agem com corporativismo e são beneficiários da impunidade, desonrando a magistratura brasileira. Assim, não parece razoável insurgir-se a Corte Suprema contra a ação de controle da Corregedoria do CNJ. O ideal seria que os próprios magistrados investigados abrissem mão de seus sigilos fiscal e bancário para a livre ação do CNJ. Fica a impressão de que os Ministros do Supremo agiram como se não devessem qualquer tipo de satisfação de seus atos à sociedade. A gravidade do imbróglio está no fato de que, a decisão, se é que foi para impedir a investigação dos membros do TJ/SP, acabou atingindo os outros 21 Tribunais do país em que havia investigação de seus membros. Guardadas as proporções, é como se um acusado com foro privilegiado, pudesse impedir, só por essa situação, a investigação de fatos envolvendo outros suspeitos.
    A quem interessa, diretamente, a restrição dos poderes do CNJ? O certo é que as decisões do Supremo esvaziaram e desmoralizaram a fiscalização que o Conselho Nacional de Justiça estava realizando nos Tribunais de Justiça e contribuiu para o sentimento de impunidade que grassa no país. É como se qualquer investigado passasse a ter certeza de que, no final, conseguirá uma liminar para brecar a investigação, reivindicando o mesmo direito que os magistrados investigados tiveram.
    Os fogos de artifício deste Natal e Ano Novo foram muito mais fortalecidos pela participação maciça dos que estavam sendo investigados pela atuante Corregedoria do CNJ, e suas vibrações foram ser sentidas alhures. Pode-se afirmar que, ao se pronunciar sobre fatos que lhe afetam, o Ministro Lewandowski conseguiu mostrar o que, antes, gravitava no campo da conjectura, mostrando que a caixa preta do judiciário está muito bem protegida e pode ser evidenciada na questão salarial dos magistrados que é complexa, secreta, algo como um “vespeiro”, uma “casa de caba” do judiciário brasileiro, e a varredura nas movimentações financeiras dos meritíssimos provocou a revolta imediata de grupos poderosos.
    Enfim, realizou-se o vetusto aforismo: quem mexe em casa de cobra, acaba picado por ela.
    (*) Lélio Lauria, blogueiro do jornal A CRÍTICA, de Manaus, AM.
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    EM MEIO À ESTA DISCUSSÃO ENTRE O STF E O CNJ, EU, EM ATENÇÃO À MEUS AMIGOS E LEITORES, NÃO PODIA OMITIR-ME DESTE TEMA. COMO RECEBI ESTE TEXTO ACIMA, DO JORNALISTA LÉLIO LAURIA, COUBE COMO UMA LUVA NAQUILO QUE PENSO E DEFENDO. E EM RESPEITO AOS LEITORES DESTE BLOG, TRANSCREVI NA ÍNTEGRA O TEXTO NA CERTEZA DE AMPLIAR O DEBATE NUM TEMA TÃO RELEVANTE PARA NOSSO PAÍS E PARA A JUSTIÇA.

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